1.
Introdução
Estávamos lendo o livro "No
Invisível", de Léon Denis, em nosso grupo mediúnico, quando o
texto nos remeteu a uma questão recorrente: afinal, qual é a diferença entre
a faculdade dos médiuns videntes e a clarividência?
O presente trabalho é um esforço
para responder a esta questão a partir de algumas premissas:
·
Os conceitos se acham ambientados dentro da
obra de cada autor, e podem variar leve ou notadamente quando analisado em
obras de autores diferentes, e até mesmo em livros diferentes do mesmo autor.
·
No estudo do Espiritismo precisamos conhecer
bem a terminologia empregada pelos seus principais contribuintes, a começar de
Allan Kardec e dos clássicos, a fim de não confundirmos seu emprego.
·
O termo clarividência não foi criado por
Kardec, embora tenha sido redefinido pelo codificador diante dos estudos dos
fenômenos espirituais. Isto nos obriga a conhecer os significados que se
encontram em teorias não espíritas, especialmente as que antecederam o
Espiritismo e influenciaram o codificador.
Iniciamos,
portanto com uma análise das definições encontradas nos trabalhos dos
principais autores da Metapsíquica e da Parapsicologia. Em um segundo momento,
revisamos a obra kardequiana. Posteriormente, analisamos um livro de Gabriel
Delanne e terminamos a revisão com a análise de dois livros do autor
espiritual, André Luiz.
Após concluirmos nosso trabalho,
estivemos lendo os comentaristas contemporâneos e nos surpreendemos com as
análises de Hermínio Miranda em seu "Diversidade dos Carismas", que
não comentamos aqui mas recomendamos ao leitor que se interesse por alguns
outros ângulos da questão e no estudo de mais alguns outros escritores que
trataram do tema.
2. Estudo da Clarividência na
Metapsíquica e na Parapsicologia: Em Busca de uma Trajetória Conceitual para o
Termo.
Uma questão aparentemente
recorrente nas tentativas acadêmicas de compreender os fenômenos descritos pelo
Magnetismo francês e pelo Espiritismo tem sido se eles realmente o são como
são descritos e se não poderiam ser explicado por qualquer causa física ou
orgânica. Esta "teimosia reducionista" vem impedindo o avanço das
pesquisas fartamente documentadas do século XIX.
Este é um dos motivos que levou à
discussão metapsíquica de o que realmente seria a clarividência. A chamada
transposição dos sentidos não seria na verdade um fenômeno telepático?
Acreditando-se ler com os dedos, não estaria o sensitivo registrando os
pensamentos das pessoas e creditando-o ao seu próprio corpo?
Richet entende como sinônimos os termos
clarividência, lucidez sonambúlica, segunda vista e sugestão mental (p.
25).Todos estariam se referindo a um "sexto sentido", uma
sensibilidade distinta da sensibilidade dos cinco sentidos, por este motivo
denominada criptestesia e que por esta razão permitiria aos sensitivos obter
conhecimentos por uma via diferente da dos sentidos e do raciocínio,
metagnomia, portanto.
Na classificação que Richet
desenvolveu para os fenômenos próprios dos possuidores deste sexto sentido, o
termo clarividência não formou categoria de análise, embora Richet houvesse
apresentado um grande número de experiências de percepções não telepáticas sem
o uso dos sentidos. No livro referido, um tema recorrente do criador da
metapsíquica é discutir as conclusões do livro de Myers, Podemore e Gurney
"The Phantasms of the Living" onde se pretende reduzir as explicações
aos fenômenos inabituais à telepatia. Richet apresenta inúmeros experimentos
onde o experimentador desconhece o conteúdo de objetos e cartas percebidos por
um sensitivo. Um termo que ele parece preferir à clarividência é hiperestesia.
Os trabalhos de Richet e da
Metapsíquica parecem ter influenciado a parapsicologia americana de Rhine,
no que diz respeito à classificação dos fenômenos e à necessidade da
experimentação. Assim como Richet estabeleceu uma classificação geral para os
fenômenos inabituais, Rhine denominou os chamados fenômenos parapsicológicos
com um termo geral identificado como Y (psi), distinguindo-os a seguir. Na
Parapsicologia a clarividência volta a ter um lugar como "faculdade de ver
sem os olhos" e distinta de outras faculdades como a telepatia e a
precognição.
Um autor bastante lido pelos
metapsiquistas brasileiros, Robert Amadou, considera a clarividência
como um termo empregado pelos antigos magnetizadores. Ele a define a seguir
como:
"conhecimento de um evento
objetivo, aparentemente independente da atividade sensorial ou racional. Assim
se opõe a clarividência, por distinção arbitrária e discutida, porém, cômoda, à
telepatia. Pode-se definir objetivamente a clarividência como uma coincidência
inexplicável pelo acaso, uma percepção sensorial ou um raciocínio consciente ou
inconsciente, entre o estado psicofisiológico do indivíduo ou seu comportamento
e um acontecimento objetivo. Quando a clarividência se exerce supostamente
sobre acontecimentos subjetivos, chama-se, então, leitura do pensamento." (1966, p. 380)
A nosso ver Amadou mais confunde
que esclarece.
Em uma publicação mais recente o
pesquisador Joseph Rush escreveu um artigo sobre a história dos estudos
parapsicológicos e reafirmou o sentido original da clarividência, redigido por
Grasset, como a faculdade de ver através de corpos opacos. Ele se refere a um
trabalho de Richet, datado de 1888, onde ele conduz um experimento bem sucedido
de cartas lacradas em envelopes (1986, p. 26) e a define como a "percepção
não sensorial de informação normalmente não conhecida por ninguém".
O pesquisador brasileiro Hernani
Guimarães Andrade considera a clarividência como:
"capacidade de perceber
visualmente, sem usar o sentido da vista, cenas, imagens, seres, tanto visíveis
quanto invisíveis para as pessoas comuns; posteriormente, este vocábulo, na
Parapsicologia, adquiriu um significado mais amplo, abrangendo toda a gama de
fenômenos compreendida pela criptestesia geral na nomenclatura de Richet" (p. 30) Envolveria
portanto, fenômenos de telepatia, clariaudiência, transposição dos sentidos e
premonição.
O que se conclui desta rápida
incursão nas ciências dos fenômenos psíquicos não habituais é que mesmo nos
dias de hoje o termo clarividência guarda uma dupla acepção, adotada de forma
diferenciada pelos diferentes autores e que deve ser entendida antes de
iniciar-se a leitura de uma obra do ramo. Alguns a empregam como sinônimo de faculdade
paranormal, em um sentido mais amplo. Outros lhe preservam o sentido mais
específico de "visão sem os olhos", ressalvadas as diferenças entre
telepatia, precognição e memória extracerebral. Como a mediunidade praticamente
saiu da "agenda" de pesquisa dos principais parapsicólogos, a
parapsicologia não se pronuncia (senão ocasionalmente e de forma redutiva)
sobre os fenômenos de vidência descritos pelo Espiritismo, não lhe permitindo
distinção ou paralelo.
3. Médiuns Videntes, Sonambúlicos e
Clarividência na Obra de Allan Kardec.
Definição
e Fenômenos de Clarividência
O termo clarividência surge pela
primeira vez com seu sentido próprio² na parte de "O Livro dos
Espíritos" que trata da emancipação da alma. Na questão 402, Kardec trata
de uma "espécie de clarividência" que acontece durante os sonhos,
onde a alma tem a faculdade de perceber eventos que acontecem em outros
lugares. Neste ponto, portanto, ele emprega o termo como uma faculdade de ver à
distância sem o emprego dos olhos. Os sonâmbulos seriam capazes deste fenômeno
devido à faculdade de afastamento da alma de seu respectivo corpo seguida da
possibilidade de locomoção da mesma. (q. 432)
Pouco depois, na questão 428, ele
indaga aos espíritos sobre a "clarividência sonambúlica". Ele
certamente se refere à faculdade já bastante descrita na literatura que trata
do sonambulismo magnético, que, na questão 426, os espíritos consideraram
equivalente ao sonambulismo natural, com a diferença de ter sido provocado. Os
espíritos lhe respondem que as duas faculdades possuem uma mesma causa: a
percepção visual é realizada diretamente pela alma do clarividente. Logo a
seguir, Kardec pergunta sobre os outros fenômenos da clarividência sonambúlica
(q. 429) como a visão através dos corpos opacos e a transposição dos sentidos.
Os espíritos reafirmam que os clarividentes vêem afastados de seus corpos, e
que a impressão que afirmam de estarem "vendo" por alguma parte do
corpo, reside na crença que possuem que precisam deste para perceberem os
objetos. A existência da faculdade sonambúlica não assegura a veracidade de
todas as informações obtidas neste estado, com o que concordam os espíritos (q.
430).
Dando continuidade à linha de
indagações sobre o sonambulismo, Kardec pergunta de onde se originam os
conhecimentos apresentados pelos sonâmbulos que eles não possuem em estado de
vigília e que não se explicam diretamente pela percepção sonambúlica. Os
espíritos argumentam que em estado de emancipação, os sonâmbulos podem acessar
conhecimentos que lhes são próprios, originários de existências anteriores, ou
de outros espíritos com quem comunicam-se (q. 431). Faz sentido, então,
questionar se todos os sonâmbulos são médiuns sonambúlicos, distinção esta que
Kardec aprofundará em "O Livro dos Médiuns". Ainda em "O Livro
dos Espíritos", afirma-se que a maioria dos sonâmbulos vê os espíritos,
mas que muitos deles podem crer que se trate de pessoas encarnadas, por lhes
ser estranha a idéia de seres espirituais.
Êxtase e Clarividência
Kardec distingue os fenômenos
sonambúlicos do êxtase e da dupla vista. O êxtase seria um sonambulismo profundo. Neste
estado ocorreria o contato com espíritos etéreos, o que causa as impressões
geralmente registradas pelos santos. Na questão 455 encontra-se a seguinte
descrição:
"Cerca-o então resplendente
e desusado fulgor, inebriam-no harmonias que na Terra se desconhecem,
indefinível bem-estar o invade: goza antecipadamente da beatitude celeste e bem
se pode dizer que pousa um pé no limiar da eternidade. No estado de êxtase, o aniquilamento
do corpo é quase completo. Fica-lhe somente, pode-se dizer, a vida orgânica.
Sente-se que a alma se lhe acha presa unicamente por um fio, que mais um
pequenino esforço quebraria sem remissão. Nesse estado, desaparecem todos os
pensamentos terrestres, cedendo lugar ao sentimento apurado, que constitui a
essência mesma do nosso ser imaterial "
Kardec, entretanto, admite que
muitas vezes o extático é vítima da sua própria excitação, fazendo descrições
pouco exatas e pouco verossímeis, podendo chegar a ser dominados por espíritos
inferiores que se aproveitam da sua condição.
Êxtase, portanto, é um estado
sonambúlico profundo caracterizado pela perda ou extrema redução da consciência
dos eventos que acontecem ao redor do extático, alterações emocionais e um
certo sentimento de "sagrado", onde o mecanismo básico é a
emancipação da alma.
Lucidez e Clarividência
No livro "Definições
Espíritas"³, Kardec define a clarividência como a "faculdade
de ver sem o concurso da visão" e logo depois como "percepção
sem o concurso dos sentidos". Posteriormente Kardec distingue
clarividência de lucidez, da seguinte forma:
"A palavra clarividência é
mais genérica; lucidez se diz mais particularmente da clarividência
sonambúlica." (KARDEC,
1997. p. 85)
Dupla Vista e Clarividência
A dupla vista, ao contrário,
seria a faculdade de perceber pelos olhos da alma, sem que para tal, seja
necessário o estado sonambúlico, em outros termos, sem que o percipiente entre
em transe profundo.
A dupla vista seria uma faculdade
permanente das pessoas que a possuem, embora não estejam continuamente em
exercício da mesma. (q. 448) É uma faculdade que se manifesta de forma
espontânea, embora a vontade de quem a possui tenha um papel em seu mecanismo e
possa desenvolver-se com o exercício. Da mesma forma que a mediunidade, há
organismos que são refratários a esta faculdade, e a hereditariedade parece
desempenhar algum papel na transmissão da mesma. Kardec fez uma descrição das alterações
psicofísicas que o portador da dupla vista ou segunda vista costuma apresentar
(q. 455):
"No momento em que o
fenômeno da segunda vista se produz, o estado físico do indivíduo se acha
sensivelmente modificado. O olhar apresenta alguma coisa de vago. Ele olha sem
ver. Toda a sua fisionomia reflete uma como exaltação. Nota-se que os órgãos
visuais se conservam alheios ao fenômeno, pelo fato de a visão persistir, mau
grado à oclusão dos olhos. Aos dotados desta faculdade ela se afigura tão
natural, como a que todos temos de ver. Consideram-na um atributo de seus próprios
seres, que em nada lhes parecem excepcionais. De ordinário, o esquecimento se
segue a essa lucidez passageira, cuja lembrança, tornando-se cada vez mais
vaga, acaba por desaparecer, como a de um sonho. O poder da vista dupla varia,
indo desde a sensação confusa até a percepção clara e nítida das coisas
presentes ou ausentes."
Kardec, em suas "Obras Póstumas"
(1978, p. 101) faz uma afirmação preciosa para a distinção entre dupla vista e
clarividência, que consideramos por bem transcrever:
"No sonamabulismo, a
clarividência deriva da mesma causa (4); a diferença está em que, nesse estado,
ela é isolada, independe da vista corporal, ao passo que é simultânea nos que
dessa faculdade são dotados em estado de vigília."
É importante frisar que em Kardec o sonambulismo natural, o
sonambulismo provocado ou magnético, o êxtase e a dupla vista são faculdades
que possuem o mesmo mecanismo: a emancipação da alma. A clarividência seria um
fenômeno passível de ocorrer nos dois primeiros estados. Embora a clarividência
seja um fenômeno predominantemente anímico, há a possibilidade de ocorrerem
percepções do mundo dos espíritos, ou seja, de sua associação com faculdades
mediúnicas. Para evitar confusão, consideramos adequado o emprego do termo
clarividência mediúnica.
Médiuns Videntes e Dupla Vista
Em "O livro dos médiuns"
(parágrafo 167), Kardec considera como médiuns videntes as pessoas dotadas da
capacidade de ver os espíritos. Nesta categoria temos os médiuns capazes de ver
os espíritos em estado de vigília e os que apenas a possuem em estado
sonambúlico ou próximo deste. A faculdade não é permanente, estando quase
sempre associada a uma crise passageira. Podemos substituir o termo crise por
transe, entendendo que por crise passageira o autor se refere aos
chamados estados sub-hipnoidais ou de transe superficial.
As pessoas dotadas de dupla-vista
podem ser consideradas médiuns videntes, as que percebem os espíritos durante
os sonhos, não. As aparições acidentais e espontâneas não configuram a existência
desta faculdade, que permite ver qualquer espírito que se apresente.
Kardec afirma que este tipo de médiuns julga ver os espíritos com os olhos, mas
tanto os vêem com olhos fechados quanto com olhos abertos.
A faculdade pode ser
desenvolvida, mas Kardec recomenda que não se provoque este tipo de faculdade,
para que o suposto médium não se torne joguete da sua imaginação. Ele considera
prudente não dar crédito senão ante provas positivas, como " a exatidão no
retratar Espíritos que o médium jamais conheceu quando encamados". Ao
advogar a possibilidade de desenvolvimento da faculdade, entendemos que Kardec
se refere às pessoas já dotadas da mesma, e não da errônea idéia de
desenvolvimento da mediunidade em quem quer que seja.
Médiuns Sonambúlicos e Clarividência
Curiosamente, Allan Kardec
distingue em duas classes de médiuns os médiuns videntes e os médiuns
sonambúlicos. Ele justifica esta classificação dizendo que sonambulismo e
mediunidade são "duas ordens de fenômenos que freqüentemente se acham
reunidos". (parágrafo 172)
...o Espírito que se comunica com
um médium comum também o pode fazer com um sonâmbulo; dá-se mesmo que, muitas
vezes, o estado de emancipação da alma facilita essa comunicação. Muitos
sonâmbulos vêem perfeitamente os Espíritos e os descrevem com tanta precisão,
como os médiuns videntes.
Conclusões: Vidência e
Clarividência em Allan Kardec
Como vemos, Kardec situa em seu
plano analítico os fenômenos anímicos e mediúnicos, de forma obviamente
distinta dos pesquisadores da Metapsíquica e da Parapsicologia.
Com as informações até então
encontradas, concluímos que a distinção entre vidência e clarividência na obra
de Allan Kardec pode ser explicada a partir do esquema abaixo:
Estado de Consciência
|
Transe Profundo
(estado sonambúlico e de êxtase, em terminologia kardequiana)
|
Transe Superficial
(crise passageira, em terminologia kardequiana)
|
-
|
Fenômenos Anímicos
|
Clarividência sonambúlica ou lucidez
|
Vidência mediúnica (6)
|
Fenômenos Mediúnicos
|
Clarividência mediúnica (5)
|
Vidência mediúnica (6)
|
Mecanismo Geral
|
Emancipação da alma
|
Emancipação da alma
|
Concluímos, portanto, que a chave
da distinção entre a clarividência e a vidência mediúnicas, encontrada na
obra kardequiana, reside na extensão do transe mediúnico.
O leitor da obra de Kardec deve
cuidar-se também para não confundir clarividência com mediunidade, uma vez que
ele emprega o termo em sentido amplo, podendo referir-se a fenômenos anímicos
como a visão à distância sem o emprego dos olhos, visão através de corpos
opacos e "transposição de sentidos" (que seria uma impressão do
sonâmbulo, e não uma descrição do mecanismo do fenômeno, que é, em última
ordem, a emancipação da alma). A relação entre clarividência e mediunidade fica
bem ilustrada com o auxílio da figura abaixo:
4. A Clarividência e os Médiuns Videntes
no Livro "O Espiritismo Perante a Ciência" de Gabriel Delanne
Delanne trata do percurso de fenômenos e
idéias no período que compreende o magnetismo e o hipnotismo na segunda parte
do livro "O Espiritismo perante a ciência".
O termo clarividência,
aqui, é empregado como sinônimo de dupla-vista. Delanne não
mantém a distinção de Kardec, empregando-os indistintamente.
É bastante esclarecedora a sua
digressão histórica. Ele analisa os fenômenos encontrados na literatura do
chamado sonambulismo natural, sonambulismo magnético e hipnotismo.
Deter-nos-emos nos fenômenos de clarividência.
Ele entende por sonambulismo
natural como um caso particular do sono onde "o indivíduo caminha
dormindo e procede como se estivesse acordado". (p. 91) Duas
características são arroladas para distinguir-se das movimentações que podem
acompanhar os sonhos: "o andar durante o sono" e "a
perda da lembrança do que se passou, ao acordar". (p. 92) Neste estado
de consciência, encontram-se muitos relatos de pessoas que prosseguem suas
atividades intelectuais. Músicos registram composições, filósofos redigem
textos, sacerdotes escrevem sermões.
A questão da clarividência
está associada ao sonambulismo natural em função das peculiaridades
descritas com relação aos casos de sonâmbulos. Delanne faz a transcrição de
diversos casos da literatura médica da época, onde se vêem uma sonâmbula que
sobe no telhado de sua casa de olhos fechados sem acidentar-se, um farmacêutico
sonâmbulo que faz formulações químicas durante o sono e que consegue "ler"
de olhos fechados uma receita absurda colocada por um médico para testar suas
faculdades sonambúlicas e de um sacerdote sonâmbulo que escrevia e lia seus
sermões, corrigindo-os durante o ato sonambúlico, mesmo tendo sido colocado um
anteparo entre seus olhos fechados e o papel onde escrevia.
Nestes exemplos, a
clarividência é entendida como uma forma de visão sem o uso dos olhos.
Por sonambulismo magnético, o
autor entende como a provocação do estado sonambúlico através do emprego do
magnetismo animal. (p. 103) O estado sonambúlico é caracterizado pela
insensibilidade da pele, do sentido do olfato (a reação ao amoníaco, por
exemplo), e da reação aos estímulos sonoros ambientes e mesmo uma
insensibilidade a estímulos dolorosos.
Interessa-nos a descrição feita
por Delanne dos fenômenos perceptivos dos sonâmbulos artificiais. Da mesma
forma que nos casos de sonambulismo natural. Há relatos de casos de
transposição dos sentidos e de dupla-vista, onde uma sonâmbula de Deleuze lê
oito linhas com os olhos vendados (p. 107). Há casos relatados de visão nas
costas, audição pela palma das mãos, leitura pela extremidade dos dedos,
leitura de cartas à distância, entre outros. Em todos os casos, Delanne busca
elementos para demonstrar a tese da emancipação da alma de Kardec como a
que melhor explicaria estes fenômenos.
Finalmente o pesquisador francês
trata do hipnotismo, que a seu ver nada mais é que uma nova teoria para
explicar os fenômenos do sonambulismo magnético. Revendo os estudos de Braid,
ele relata que os hipnotizados não doentes podem, com os olhos fechados, "desenhar,
descobrir objetos ocultos, designar os indivíduos a quem estes objetos
pertencem, ouvir uma conversa, em voz baixa, num aposento vizinho, enfim,
predizer o futuro". (p. 126) Vemos aqui também a existência de
fenômenos de clarividência. Assim como Allan Kardec, seu discípulo mantém o
emprego do termo clarividência para fenômenos não-mediúnicos.
Na mesma obra citada, Gabriel
Delanne trata da mediunidade de vidência, que conjuntamente com a
mediunidade de audiência considera como mediunidades sensoriais.
Para explicar os fenômenos que
havia analisado, ele considera dois tipos de mecanismos de vidência: um
primeiro onde o médium veria com os olhos e um segundo em que o médium veria em
estado de desprendimento (médium sonambúlico, portanto, na descrição
kardequiana).
Em um primeiro momento, Delanne
distingue a mediunidade vidente das ilusões de ótica e das alucinações. A
mediunidade vidente se distingue da alucinações à medida que caracteriza-se
como a percepção de pessoas que viveram, dão mostras da sua identidade e
apresentam conhecimentos verificáveis, desconhecidos anteriormente pelos
médiuns. Outro elemento importante de distinção entre os fenômenos que
poderíamos adicionar ao seu trabalho seria o caráter patológico da personalidade
das pessoas que alucinam sem o uso de drogas ou as alterações fisiológicas
causadas por doenças orgânicas, como as febres. Em síntese, os médiuns videntes
teriam "supostas alucinações" sem que as mesmas transtornassem
sua saúde mental.
Na mediunidade sonambúlica,
o vidente entraria em um certo torpor, afastando-se do corpo sem, no entanto,
adormecer. Ele passa a relatar as percepções que tem do ambiente físico e
espiritual ao alcance da sensibilidade do seu perispírito, e que são
transmitidos ao seu sistema nervoso.
A visão dos espíritos "com
os olhos", no pensamento de Delanne, seria distinta das
materializações. Seu suporte empírico parece vir dos inúmeros casos isolados de
aparições espontâneas, como as "visitas no momento da morte"
para pessoas que aparentemente nunca mostraram qualquer dote mediúnico, que
Flammarion tanto descreveu em seus trabalhos. No caso das materializações,
todos os presentes percebem pelo órgão da visão os espíritos, que se servem do
"fluido nervoso" do médium de efeitos físicos para "condensar-se".
No caso da vidência com os olhos, Delanne descreve o seguinte mecanismo que
reproduzo a seguir:
"...Se um Espírito, porém,
quer manifestar sua presença, entra em relação fluídica com o encarnado, assim
como vimos precedentemente, e, estabelecida a comunicação, acumula pelo
magnetismo espiritual, no nervo ótico, uma quantidade de fluido nervoso maior
que de ordinário; certas fibras se sensibilizam e podem, desde logo, entrar em
vibração correspondente à do invólucro do Espírito. Desde que se produz esse
fenômeno, o ser, assim modificado, vê o Espírito e o verá enquanto a ação
continuar." (p. 370-371)
Continuando sua explicação,
Delanne afirma que com a repetição do fenômeno as fibras óticas se adaptariam
aos poucos às vibrações dos espíritos, tornando-se cada vez mais apto à sua
percepção. Desta forma, faria sentido falar em um novo sentido. (p. 371)
Neste fenômeno os espíritos
atuariam em suas vibrações da mesma forma que nas experiências da Ótica onde os
raios ultravioleta tornam-se visíveis ao serem dirigidos a um vidro que contém
silicato de urânio.
Embora esta tese se constitua em
uma explicação plausível para os fenômenos de aparições espontâneas, ela nos
deve ainda alguns esclarecimentos. Se os espíritos podem atuar diretamente no
nervo ótico das pessoas em geral, alterando suas vibrações, porque a faculdade
de percebê-los visualmente não é universal? Caso haja alguma singularidade das
fibras óticas de algumas pessoas, que seriam então médiuns videntes "com
os olhos", porque as alterações anatômicas ainda não foram constatadas
pela medicina contemporânea? Que estruturas anatômicas agem como sensores para
as ondas espirituais? Se não há alterações anatômicas, que alterações
funcionais distinguem médiuns videntes de pessoas sem esta faculdade? Enquanto
tais respostas não são respondidas satisfatoriamente, prefiro crer que a
faculdade de vidência espiritual tem por elemento sensor o perispírito do
médium.
5. Vidência e Clarividência na Obra de
André Luiz
Encontramos referências sobre a
mediunidade de vidência e a clarividência em dois livros de André Luiz,
psicografados por Francisco Cândido Xavier.
Em "Mecanismos da
mediunidade", são apenas três parágrafos justapostos ao final do
capítulo que trata dos efeitos intelectuais. Neles André Luiz afirma que os
fenômenos de clarividência e clariaudiência têm por mecanismo a transmissão de
quadros e imagens do espírito comunicante para a mente do médium, "valendo-se
dos centros autônomos da visão profunda, localizados no diencéfalo, ou lhe
comunica vozes e sons, utilizando-se da cóclea" (p. 135).
Este fenômeno, como qualquer
outro fenômeno mediúnico, seria tanto mais nítido quanto maior a sintonia
mental entre espírito comunicante e médium.
Encontramos algumas informações
adicionais no livro intitulado "Nos domínios da mediunidade".
O instrutor Áulus afirma que os médiuns acreditam ver e ouvir, mas esta
impressão é apenas "derivada do hábito", já que os órgãos dos
sentidos não são os sensores do plano espiritual.
Decreve-se a diferença de
percepção de médiuns dotados da mesma faculdade e a interveniência dos
fenômenos psicológicos de um dos médiuns sobre a capacidade de registrar as
idéias do espírito comunicante. No enredo, o médium Castro, embora veja o
espírito Clementino, não lhe registra as palavras porque deseja ver a mãe, já
desencarnada.
Um outro evento importante diz
respeito à dificuldade do médium distinguir cenários do plano espiritual de
imagens mentais do espírito comunicante. No enredo do texto, André Luiz se
espanta ao ouvir o relato da médium Celina de ter visto um riacho e a visão de
Eugênia de um edifício de crianças, que ele não era capaz de perceber. Áulus
lhe explica que as médiuns tomavam por imagens o que em verdade eram
pensamentos sugeridos por Clementino.
Após rever os capítulos deste
último livro que tratam de mediunidade sonambúlica e desdobramento, não
encontramos qualquer explicação por parte do autor espiritual ou dos seus
instrutores voltada à clarividência.
Dada a exiguidade de informações,
nossas conclusões apontam para uma pequena distinção entre os conceitos de
André Luiz e de Allan Kardec. Não encontramos também em "Mecanismos da
Mediunidade" uma distinção clara entre as duas faculdades que estamos
estudando neste artigo. André Luiz não parece distinguir clarividência de
vidência, focalizando suas análises no que há de comum entre estas duas
faculdades.
Talvez, por esta razão, Martins
Peralva tenha focalizado seu conceito de clarividência, após a leitura
deste autor espiritual, na acuidade da percepção, quando diz que a clarividência
é "a faculdade pela qual a pessoa vê os Espíritos com grande
clareza" e a clariaudiência é "a faculdade pela
qual a pessoa ouve os Espíritos com nitidez".
6. Concluindo
Tendo revisto três importantes
autores espíritas sobre a questão da distinção entre vidência e clarividência,
não encontramos divergências importantes entre eles, embora acreditemos que
eles empreguem estas palavras de modo diferente.
Nossa opinião é de que é
dispensável a polêmica calcada em significado de palavras e totalmente
desnecessário definir um sentido universal para elas.
O estudioso do Espiritismo deve,
entretanto, ser capaz de distinguir estas nuances de cada um dos autores a fim
de compreender melhor o que desejam expressar, quando derivam suas considerações, a partir de
sua terminologia e evitar confusão das suas afirmações.
7. Fontes Bibliográficas
ANDRADE, Hernani G. Parapsicologia experimental. São Paulo: Pensamento, s.n.
AMADOU, Robert. Parapsicologia.
São Paulo: Mestre Jou, 1966.
ANDRÉ LUIZ. Mecanismos da mediunidade. Rio de Janeiro: FEB, 1977. [Psicografado
por XAVIER, Francisco Cândido]
______ Nos domínios da mediunidade. Rio de Janeiro: FEB, 1979. . [Psicografado
por XAVIER, Francisco Cândido]
DELANNE, Gabriel. O espiritismo perante a ciência. Rio de Janeiro: FEB, 1993.
KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. [online] Rio de Janeiro: FEB, edição
eletrônica.
______ O livro dos médiuns. [online] Rio de Janeiro: FEB, edição eletrônica
______ Definições espíritas. Niterói - R.J.: Lachâtre, 1997.
______ Obras póstumas. Rio de Janeiro: FEB, 1978. ["Causa e natureza da
clarividência sonambúlica" e "A segunda vista"]
PERALVA, Martins. Clarividência e clariaudiência. In: Estudando a mediunidade.
Rio de Janeiro: FEB, 1981.
PIRES, J. Herculano. Parapsicologia hoje e amanhã. São Paulo: Edicel, 1987.
RUSH, Joseph. Parapsychology: a historical perspective. In: EDGE, Hoyt
et al. Foundations of parapsychology. Boston: Routledge & Kegan Paul, 1986.
SANTOS, Jorge Andréa. Nos
alicerces do inconsciente. Rio de Janeiro: Fon Fon e Seleta, 1980
- Capítulo completo do livro “O Transe
Mediúnico e Outros Estudos”, de 1999. Uma versão simplificada foi enviada para
publicação no Boletim GEAE
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