A essência em detrimento das formas
Dona Margarida era uma senhora que já passava
dos sessenta anos de idade, embora seu dinamismo não demonstrasse, aparentando
ser muito mais jovem. Sempre alegre, disposta e conversadeira, era conhecida e
querida por todos do bairro onde morava. Parteira aposentada, trabalhara como
enfermeira num hospital público por muitos anos e vivia modestamente fazendo um
trabalho voluntário na creche perto de sua casa.
Nunca havia parido, mas considerava-se
meio-mãe de quase uma centena de crianças. Certo dia, observando, da janela de
sua casa, a meninada brincar na rua, percebeu que uma senhora distinta e
desconhecida, ao chegar próximo de seu portão, benzeu-se com o sinal da cruz e
atravessou a rua rapidamente. Estranhou o gesto e até desceu a rua para
verificar se havia algo estranho por ali, nada observando. Curiosa, perguntou a
um dos meninos se conhecia aquela senhora, e foi informada de que se tratava de
moradora nova do bairro. Ainda segundo o menino, soube que era uma carola da
igreja.
Dona Margarida, em sua simplicidade, não deu
mais importância ao fato, até o dia em que, entrando na quitanda de seu Zé,
encontrou-se com a senhora e pôde perceber seu mal-estar com sua presença. A
mulher rapidamente deu-lhe as costas e outra vez fez o sinal-da-cruz
disfarçadamente. Foi impossível não se sentir embaraçada com aquilo, e, quando
ela saiu, comentou com seu Zé e foi informada:
- Seu
nome é Eleonora, professora aposentada. Hoje ela se dedica em tempo integral à
Igreja Católica, coordenando vários setores dos trabalhos prestados nas
capelas. Comentou com minha esposa que fez um levantamento aqui em nosso bairro
para avaliar o número de famílias católicas. Vai cadastrar todas e fazer apelo
para que compareçam à missa todos os domingos, além de pedir que se desvinculem
das visitações ao Centro de Umbanda a que estão acostumados, pois, segundo ela,
“é prática primitiva e perdição dos cristãos”.
Estava explicado! Dona Margarida era a
dirigente do terreiro de Umbanda onde as pessoas buscavam ajuda, não importando
a religião que seguiam. Um misto de tristeza e pena foi o que passou pelo
coração de dona Margarida, mas, como não sabia guardar mágoas, logo esqueceu.
Em tantas outras ocasiões aconteceram encontros inevitáveis entre Eleonora e
pessoas que moravam perto de dona Margarida. Voltava a se repetir o mesmo
embaraço. Muitos comentários chegavam até os ouvidos de dona Margarida sobre os
sermões dominicais, quando o tema “Umbanda” era abordado e os fiéis eram
alertados sobre o perigo daquela prática – segundo eles, demoníaca. Dona
Margarida também soube que a senhora católica havia passado para os moradores
do bairro um abaixo-assinado que ela apresentaria posteriormente à Prefeitura
Municipal, pedindo o fechamento do centro de umbanda, alegando que o som dos
atabaques e a cantoria até tarde da noite incomodavam os vizinhos, além de
alegar que os freqüentes “despachos” nas esquinas eram um “perigo iminente à
população”, ocasionado pelos umbandistas.
Querendo ou não, dona Margarida estava se
abatendo com todos os rumores; afinal, sempre vivera-se em paz naquele lugar,
independentemente do credo religioso, da cor da pele ou da condição
socioeconômica dos moradores. Por isso, naquela noite, após o atendimento ao
público no terreiro, vovó Catarina, a preta velha protetora de dona Margarida,
reuniu a corrente de médiuns e se manifestou:
- Saravá
aos filhos de fé! A preta velha e os outros manos que aqui vêm prestar a
caridade estão observando que os filhos andam preocupados com os
acontecimentos. Embora não estejamos mais na época da escravidão negra, ainda
as sombras insistem em escurecer o coração de algumas criaturas que são
instigadas a escravizar outras, segundo sua vontade e seu poder. Enquanto
existir a ignorância em lugar da busca do conhecimento e enquanto o egoísmo
ocupar o lugar destinado ao amor no coração das pessoas, existirão portas
abertas por onde as trevas se infiltram para desarmonizar o mundo. Os escravos,
para exercer seu culto aos Orixás, precisaram enganar os senhores com o
sincretismo. Hoje existe a liberdade de crença, de culto, mas existem as leis
dos homens, que precisam e devem ser respeitadas. Por isso, esta preta velha
vem pedir aos filhos que respeitem a lei do silêncio e retirem os atabaques do
terreiro. O pedido da preta velha caiu como algo fúnebre sobre a corrente,
levando alguns a argumentar:
-
Minha mãe, com todo respeito, nosso trabalho vai ficar descaracterizado!
- O
filho sabe que não é o som dos atabaques que deixa a caridade que aqui é
prestada mais ou menos eficiente ou agradável aos olhos do grande Pai Zambi. Da
mesma forma que a altura com que são cantados os pontos não interfere na
qualidade do trabalho efetuado, mas sim e apenas o amor e a dedicação que os
filhos derramam de seus corações. São apenas costumes que podem ser mudados, e,
se aos olhos do mundo lá fora é isso que incomoda, de nada custa cortar os
galhos, se são eles que incomodam a janela do vizinho, antes de ter que
sacrificar a árvore inteira.
- Eles
estão sendo injustos conosco, minha mãe. Acusaram- nos de efetuar despachos nas
esquinas, e a senhora sabe que isso não faz parte de nosso culto.
- O
filho referiu-se ao termo certo: injustiça. Se nada devem, nada temam. O tempo
se encarrega de mostrar a verdade. Por isso os manos da espiritualidade
insistem seguidamente com a corrente para que estudem e se atualizem, evitando
falsas crenças, procurando fazer da amada Umbanda “uma banda só”, evitando
muitos ritos inúteis e misturas confundíveis e desnecessárias. É preciso que
todos os umbandistas procurem entender que a magia é mental e que os materiais
usados apenas catalisam as energias, sendo necessários somente enquanto as
mentes acostumadas ao fenômeno físico ainda não estiverem adestradas. Que se
deixe de confundir “oferendas” que não têm nada de ofensivo às pessoas, nem ao
sítio sagrado da natureza, com os despachos que causam mal-estar aos
transeuntes de vossas cidades e que deixam espalhados materiais perigosos como
vidros quebrados, além da exposição de animais em decomposição, quando não, de
bonecos alfinetados, nada agradáveis aos sentidos da visão e do olfato. Por que
então não substituir o tão agradável som dos atabaques pelo som de uma leitura
instrutiva e evangelizadora aos consulentes e à corrente mediúnica? Quem sabe é
hora de os filhos pensarem na formação de uma escolinha aos pequenos,
ensinando-lhes sobre a realidade da umbanda, renascida em solo brasileiro, mas
de origem ancestral, de maneira a esclarecer os espíritos desde cedo e, assim,
desmistificar a visão distorcida desse culto sagrado.
Nada
como esclarecer, como ensinar para que se desfaçam os equívocos. Já passou o
tempo em que apenas a fé, mesmo irracional, bastava. O mundo evoluiu, e é
preciso que tudo e todos se ajustem a esse processo.
Prova
disso está na tirania que se exerce sobre mentes desavisadas, que,
condicionadas a uma fé irracional e milagreira, entregam tudo o que possuem a
certos pastores de religiões que se dizem cristãs. É preciso discernimento do
médium que trabalha na magia, pois ela é uma faca de dois gumes. Os
necessitados que batem à porta do terreiro, se esclarecidos sobre a parte que
lhes cabe nas mudanças de atitude, deixarão de mistificar a Umbanda como a
“milagreira das horas de apuro” e passarão a respeitar o culto como ele merece
ser respeitado. Se mentem, cabe aos filhos desmentir com atitudes justas, nunca
com revides. A umbanda hoje, meus filhos, pela vibratória de Xangô, atua em
vosso mundo de forma instigante, para que se exerça a justiça em todos os
setores da sociedade. Nada temam, não enfraqueçam vossa fé e fiquem alerta para
a verdadeira caridade, nunca julgando quem quer que seja. “Todos” que aqui
aportarem deverão ser atendidos com amor e respeito.
Embora
atentos, talvez nem todos entenderam a última frase de vovó Catarina. Naquele
terreiro, a partir daquela noite, calou-se o som dos atabaques. Demorou um
tempo até que os médiuns se acostumassem com aquilo. Mas, diante de várias
tarefas a que se ligaram, como a fundação Escolinha de Umbanda Cosme e Damião,
onde havia curso para os pequenos e para os adolescentes, além do estudo mensal
da corrente mediúnica e das palestras esclarecedoras para os consulentes, pouco
tempo restou para chorar o leite derramado. Como bem dizia vovó Catarina,
“mente ocupada no serviço da caridade é ferramenta afiada, e preta velha gosta
de cortar mironga com ela … eh eh”.
Os ânimos haviam se acalmado, e dona
Margarida estava se acostumando com o benzimento costumeiro da beata, sempre
que o acaso as levava a se encontrar. A conselho da preta velha, cumprimentava
Eleonora educadamente e mentalmente a abençoava. Certa manhã, ao chegar à
quitanda, percebeu certo tumulto que se fazia lá dentro. Logo verificou que
alguém se debatia no chão, acometido de aparente ataque epiléptico.
Chegando mais perto, viu ser dona Eleonora.
Sem demora, tomou providências, afastando as pessoas que, assustadas, em vez de
ajudar, sufocavam-na fechando um círculo ao seu redor. Dona Margarida sabia
como lidar com a situação por causa de seus longos anos de dedicação à
enfermagem. Arregaçou então suas mangas, abriu a gola apertada da camisa da
vítima, rasgou um pedaço de tecido de sua própria saia e, enrolando-o em seu
indicador, salvou Eleonora de asfixiar-se com a própria língua. Fez todos os
procedimentos de praxe, e, aos poucos, aquela senhora voltava a si outra vez,
sem entender o que havia se passado, agora sendo aconselhada por dona Margarida
a procurar imediatamente um médico.
Muito tempo depois desse fato, certa noite,
quando os atendimentos já findavam no terreiro e as portas eram fechadas para
que a corrente mediúnica pudesse encerrar os trabalhos, uma senhora de óculos escuros
e com um lenço amarado na cabeça cobrindo parte da face, tentando claramente
disfarçar sua imagem, pedia ao cambono que, por favor, atendessem-na. Foi
levada até a frente do Conga, onde vovó Catarina ainda estava incorporada em
seu aparelho, esperando-a.
- Nega
véia saúda zi fia.
- Estou muito envergonhada. Na verdade, tenho
sonhado muito que estou aqui à sua frente e agora vejo que é tudo igual, como
no sonho. Estou apavorada, pois andam acontecendo coisas estranhas comigo.
Ontem mesmo o padre a quem tenho auxiliado todos estes anos pediu para que me
afastasse da igreja, pois acha que estou endemoniada. Por várias vezes, quando
as pessoas me procuram para aconselhá-las, eu saio do ar, e dizem que, além de
me abaixar como uma velha arqueada, falo diferente, assim como a senhora está
falando agora. Dizem que ensino remédios com ervas, banhos de descarrego, que
benzo. Quando volto do transe, sinto-me muito bem; nem as dores do reumatismo
sinto mais por vários dias. Depois que isso começou a acontecer, nunca mais
tive os desmaios. Mas estou triste, pois minha vida é a igreja, e agora fui
afastada.
- Eh
eh… zi fia. Salve a mana que tá grudada em seu costado!
Por mais de hora, enquanto a corrente,
concentrada, cantava baixinho pontos aos Orixás, vovó Catarina esclareceu
àquele coração sedento de sabedoria, de entendimento, as coisas do espírito.
Falou-lhe sobre sua mediunidade reprimida, sobre caridade, sobre Deus como Pai
de todos, sobre Cristo e o que era ser cristão. Daquele dia em diante, mesmo
sem os atabaques naquele terreiro, mais uma voz se juntava quando a corrente
louvava os Orixás, dando um tom especial à caridade.
“Saravá
pra vovó Catarina,
que
é dona da gira do meu terreiro.
Saravá
pra vovó Catarina e
todas
as almas do cativeiro!”
Título: Causos de Umbanda – A psicologia dos pretos
velhos
Autor: Leny W. Saviscki
Coautor: Vovó Benta
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